O vereador Delegado Gustavo Mesquita (Republicanos) apresentou na Câmara Municipal o Projeto de Lei Nº 106/2025, que pretende instituir o Programa Municipal de Atenção e Recuperação de Dependentes Químicos em Situação de Rua (PMARDQ) em Guarulhos. A proposta, que envolve internação compulsória (ou involuntária), tem como principal objetivo “oferecer tratamento especializado, reinserção social e acompanhamento contínuo para pessoas em situação de rua que enfrentam dependência química severa”. Esse debate, no entanto, é um dos mais complexos que envolvem as grandes cidades do Brasil, pois não existe uma “receita” simples para tratar essa questão.
O fato é que Guarulhos é um dos municípios onde dependentes químicos e moradores em situação de rua tem se espalhado. O Viaduto Cidade de Guarulhos, o limite da Vila Galvão com o Jaçanã e a Praça 8 de Dezembro são apenas alguns dos locais em que há concentração de usuários de drogas e pessoas vivendo de forma degradante aqui na cidade.
Não existe comprovação oficial de que o esvaziamento da Cracolândia tenha relação com o espalhamento de dependentes químicos em Guarulhos. Também não há confirmação que vans e ônibus tenham “despejado” usuários por aqui. O que já foi identificado é que a venda e o uso de drogas em grupos estão se espalhando por diferentes bairros nas cidades da região metropolitana de São Paulo.
Entenda o Projeto de Lei em Guarulhos
O projeto do vereador Delegado Mesquita busca alinhar a política municipal à legislação federal vigente, a Lei Federal nº 13.840/2019, que já regulamenta a internação involuntária no Brasil. O texto diz que pretende garantir “um programa estruturado, humanizado e juridicamente sólido”.
Segundo o PL, para que ocorra a internação, é necessária a autorização de um médico responsável, mediante um laudo técnico que comprove a necessidade do tratamento. A solicitação pode ser feita por um familiar, responsável legal ou, na ausência destes, por um servidor público da saúde, assistência social ou órgão municipal de combate às drogas.
É mandatório que a internação seja comunicada ao Ministério Público e à Defensoria Pública em até 72 horas, conforme a Lei Federal nº 13.840/2019. Além disso, o procedimento deve ser conduzido apenas em unidades de saúde públicas ou privadas devidamente credenciadas pelo Município, com duração máxima de 90 dias, podendo ser encerrada antes por decisão médica.
A estrutura do Programa Municipal de Atenção e Recuperação de Dependentes Químicos em Situação de Rua prevê uma coordenação conjunta entre a Secretaria Municipal de Saúde, a Secretaria de Assistência Social, a Guarda Civil Municipal, o Conselho Municipal de Políticas sobre Drogas (COMPOD) e outros órgãos públicos relevantes. Para a viabilização do programa, a Prefeitura de Guarulhos poderá firmar convênios com entidades.
Além da internação, o programa enfatiza as ações de reinserção social para os pacientes recuperados. Isso inclui trabalhos de capacitação profissional e empregabilidade em parceria com o setor privado, a oferta de moradias assistidas e centros de acolhimento para egressos do tratamento a fim de evitar o retorno às ruas, e acompanhamento psicológico, social e jurídico contínuo para auxiliar na reintegração familiar e comunitária.
A fiscalização da implementação do programa será feita por uma comissão permanente, composta por representantes das Secretarias de Saúde e Assistência Social, membros do Ministério Público e da Defensoria Pública, representantes da Câmara Municipal, e membros da sociedade civil com atuação em direitos humanos e política sobre drogas.
O texto do Vereador Delegado Mesquita ressalta a urgência de Guarulhos em implementar ações concretas para resgatar esses indivíduos e reduzir impactos negativos na segurança pública e qualidade de vida da cidade. Não há previsão para o Projeto de Lei ser colocado em votação na Câmara Municipal. Em caso de aprovação, o texto vai para sanção do prefeito Lucas Sanches.
O que é internação compulsória?
É a que ocorre sem o consentimento do paciente e a pedido de terceiro. Geralmente, são os familiares que solicitam a internação do paciente, mas é possível haver outros solicitantes. O pedido tem que ser feito por escrito e aceito pelo médico psiquiatra.
A lei determina que, nesses casos, os responsáveis técnicos do estabelecimento de saúde têm prazo de 72 horas para informar ao Ministério Público do estado sobre a internação e os motivos dela. O objetivo é evitar a possibilidade de esse tipo de internação ser utilizado para cárcere privado.
Não é necessária a autorização familiar. A internação compulsória é sempre determinada pelo juiz competente, depois de pedido formal, feito por um médico, atestando que a pessoa não tem domínio sobre a própria condição psicológica e física. O juiz levará em conta o laudo médico especializado e as condições de segurança do estabelecimento, quanto à salvaguarda do paciente, dos demais internados e dos funcionários.
Contraponto
Grandes cidades como Rio de Janeiro, Niterói, Ribeirão Preto e mesmo a capital paulista já tentaram implementar políticas de internação compulsória. A medida, porém, encontra resistência entre especialistas e entidades médicas, jurídicas e de Direitos Humanos. A justificativa é que a internação compulsória pode violar direitos fundamentais à liberdade e autonomia, além de não existir confirmação sobre a eficácia do tratamento.
No início de maio, a Defensoria Pública da União, o Ministério Público Federal e a Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro divulgaram uma nota técnica conjunta sobre a Lei nº 3.997/2025, do município de Niterói (RJ). A norma, que institui uma política municipal de acolhimento humanizado a pessoas com transtornos mentais e/ou em uso abusivo de álcool e outras drogas, foi considerada inconstitucional e inconvencional pelas instituições.
Segundo o documento, o ponto mais preocupante da nova legislação é a previsão do “acolhimento sem consentimento”, que permite a internação forçada de pessoas adultas, inclusive a pedido de servidores da saúde ou assistência social. Na prática, explicam os autores da nota técnica, trata-se de internação psiquiátrica compulsória sem ordem judicial, em contrariedade à Constituição, à legislação federal e aos tratados internacionais de direitos humanos ratificados pelo Brasil.
Em abril deste ano, a Comissão de Direitos Humanos, Habitação, Igualdade Racial e Defesa do Consumidor da Câmara Municipal de Belo Horizonte realizou um debate público sobre a internação involuntária de dependentes químicos em situação de rua, objeto de polêmica entre agentes públicos, entidades e especialistas, que questionam o preparo dos equipamentos e profissionais da rede de assistência e os métodos de tratamento a serem aplicados.
A medida –encaminhar o dependente químico a uma instituição de tratamento sem o seu consentimento explícito– é recomendada para situações em que o indivíduo apresenta riscos significativos à saúde ou à segurança própria e de terceiros.
Ainda que a internação deva atender pedido de familiar, representante legal, ou na falta destes, de servidor da área de saúde, da assistência social ou do Sistema Nacional de Política sobre Drogas (Sisnad), o uso da internação involuntária levanta questões importantes.
“O problema das pessoas que fazem uso de drogas, principalmente aquelas que estão em via pública, passa por uma estratégia muito mais complexa do que simplesmente prender a pessoa por meio de uma internação compulsória ou forçada. Essas pessoas precisam ter acesso a moradia, cultura, trabalho e geração de renda. A saúde é uma das dimensões da vida. Não dá para um gestor público acordar pensando que achou a solução que é prender pessoas”, opinou Lucio Costa, diretor executivo do Instituto Desinstitute, que defende direitos humanos e saúde mental, ao criticar em 2023 o prefeito do Rio de Janeiro, Eduardo Paes, por defender a internação compulsória.
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