60 anos do fim do Trem da Cantareira: a história da ferrovia que deixou de existir em Guarulhos

Uma viagem no tempo entre a zona norte de São Paulo e Guarulhos. Da inauguração em 1893 ao fim em 1965.

Vinícius Andrade

redacao@guarulhostododia.com.br

Foto da Estação Guarulhos em setembro de 1963; imagem retirada do Blog Quando a Cidade Era Mais Gentil

Publicado em 03/05/2025 às 20:30 / Leia em 10 minutos

Uma ferrovia que marcou época na zona norte de São Paulo e em Guarulhos, o Tramway da Cantareira, também lembrado como “trenzinho”, deixou de ser utilizada há 60 anos, no dia 31 de maio de 1965. O trem deixou um legado complexo, entre o desenvolvimento e os desafios operacionais que culminaram em sua extinção. Construído no final do século 19 para atender a necessidades de infraestrutura, ele rapidamente se tornou vital para o transporte de passageiros, moldando a paisagem urbana e a vida de milhares de usuários durante mais de sete décadas.

O Guarulhos Todo Dia conta um pouco dessa história na reportagem deste sábado (3), usando como base informações encontradas na tese de mestrado “O que o Tramway da Cantareira pode nos ensinar?“, do historiador Rafael Saraiva Fernandes, da Unifesp, além de registros do acervo histórico do município.

O Trem da Cantareira foi construído pela Comissão de Saneamento do Estado de São Paulo. A história começou oficialmente em 1893, com a inauguração da ferrovia voltada para dar suporte ao transporte de materiais essenciais para a construção de reservatórios de água potável na Serra da Cantareira, localizada na zona norte da cidade de São Paulo. Autoridades e convidados ilustres, como Bernardino de Campos, Cerqueira César, José Pereira Rebouças e Ramos de Azevedo, participaram do evento inaugural.

Já no ano seguinte, em 1894, o Tramway expandiu suas operações e passou a transportar também passageiros. Inicialmente, a ferrovia era utilizada predominantemente por grupos elitizados da sociedade paulistana para passeios recreativos na Serra da Cantareira, como evidenciado por descrições em jornais da época sobre “sociedade escolhida e fina” em carros especiais. A possibilidade de passear aos domingos, após seis dias de trabalho, era destacada pela imprensa.

Com o passar dos anos, no entanto, o perfil dos passageiros mudou, e as imagens de 1911 já mostravam a Cantareira repleta de famílias de operários aproveitando o local em dias atípicos de descanso. Isso reflete como a ferrovia, que inicialmente atendia a propósitos específicos e a um público restrito, passou a impactar a vida de um número crescente de pessoas em diversas escalas.

Mapa do Tramway da Cantareira, que ligava a zona norte de São Paulo a Guarulhos
O mapa do Tramway da Cantareira, que deixou de existir em 1965

A estação Jaçanã, inclusive, foi imortalizada na música Trem das Onze, de Adoniran Barbosa. Foi construída em 1910 e funcionou até 1965, mas o último trem partia por volta 20h30, não às 23h como dizia o clássico samba.

Expansão do Trem da Cantareira

O Tramway estendeu seus trilhos ao longo do tempo, ramificando-se a partir da Estação do Areal para a Serra da Cantareira e em outra direção, passando pelo Carandiru e Parada Inglesa, seguindo pelo Jaçanã até chegar a Guarulhos.

Outros ramais, como os dos Menezes, Pedra Branca, Ponte Pequena, Pedreira e Hospital Militar, existiam, embora muitos fossem destinados principalmente ao transporte de cargas. O ramal Guapira, inaugurado em 1910, desempenhou um papel importante e foi o que possibilitou a chegada do trem a Guarulhos.

Na imagem abaixo, dá para ver o traçado que os trens percorriam:

Traçado do Tramway da Cantareira, que fazia percurso entre São Paulo e Guarulhos
Traçado do antigo Tramway da Cantareira (fonte: São Paulo: Arquivo do Estado: Imprensa Oficial, 2000, p.17).

Guarulhos foi alcançada pelo Tramway em 1915

A chegada da ferrovia foi vista com grande satisfação no município, como um “melhoramento” que permitiria um rápido deslocamento até São Paulo e beneficiaria tanto a lavoura local para escoamento quanto o lazer para os paulistanos.

Em Guarulhos, o Tramway contava com seis estações principais: Vila Galvão, Torres Tibagi, Gopoúva, Vila Augusta, Guarulhos e Cumbica –a estação Cumbica servia apenas para transportar militares para a Base Aérea de Cumbica.

A presença da ferrovia e de suas estações influenciou diretamente a formação e o desenvolvimento de subúrbios, tanto na zona norte de São Paulo quanto em partes de Guarulhos, com empresas privadas inclusive utilizando a facilidade de transporte como atrativo para a venda de loteamentos.

Veja esse anúncio publicado em um jornal de 1928, falando sobre as vantagens de comprar terrenos no Gopoúva, bairro que contava com uma estação ferroviária:

Anúncio sobre as vantagens de morar no Gopoúva em 1928 por causa do trem da Cantareira
Anúncio de venda de terrenos em Gopoúva, Guarulhos, 1928

A estação Vila Galvão era a que mais gerava receitas dentre as existentes fora da capital em relação à receita de transportes de passageiros. Sozinha, rendia quase o mesmo que as outras estações de Guarulhos somadas.

O detalhe é que estação Vila Galvão estava situada em bairro que já possuía entre seus moradores setores elitizados vivendo em palacetes. Porém, conforme crescia a população paulistana, os relatos na imprensa indicavam cada vez mais a presença de passageiros pertencentes à classe trabalhadora, muitos desses que também haviam adquirido lotes nas proximidades da ferrovia.

Estação Vila Galvão

Abaixo, uma imagem provavelmente da década de 1960, retirada do livro Guarulhos Espaço de Muitos Povos, do historiador Elton Soares Oliveira e de outros colaboradores. A seta vermelha aponta para uma composição com destino a São Paulo, a seta preta indica a Rua da Estação, o retângulo menor destaca a Igreja Matriz, o retângulo maior enfatiza a fábrica Carbonell; e o pontilhado preto segue pela rua D. Pedro II. Veja:

Foto de Guarulhos com trem e o centro ao fundo

O crescimento da população de Guarulhos

A tese de Rafael Saraiva Fernandes, da Unifesp, traz dados interessantes sobre o crescimento da população de Guarulhos ao longo dos anos, seguindo a evolução do Trem da Cantareira. Em 1894, por exemplo, a cidade tinha apenas 2.379 habitantes. Em 1920, cerca de cinco anos depois do início da operação ferroviária, eram 5.419 moradores. Um crescimento ainda lento.

“Assim como a capital paulista, loteamentos foram realizados nas proximidades do leito do Tramway, em especial próximo de suas estações. Embora alguns desses lugares já existissem, novos surgiram e foram a partir das estações de trem e dos loteamentos particulares que todos ganharam impulso e desenvolvimento. Em 1940, a população guarulhense era de 13.523 pessoas e o transporte de passageiros no Tramway por Guarulhos não era tão intenso.”

Em 1953, dois anos depois da inauguração da Via Dutra, Guarulhos já contabilizava 40.000 habitantes. Em menos de uma década, em 1960, a população da cidade mais que dobrou, atingindo a marca de 101.273 moradores, com a maioria dos novos habitantes atraídos por vagas de trabalho nas indústrias e outras atividades urbanas.

No entanto, conforme demonstra o pesquisador, a ocupação nas imediações da estação Guarulhos pouco se alterou com a rápido crescimento demográfico, pois os novos contingentes populacionais se fixaram mais ao leste da cidade –distante do centro– região que o Tramway não servia.

Informações sobre os trens da Cantareira lotados

Superlotação, problemas operacionais e promessas não cumpridas

Apesar de sua importância ao longo dos anos, a história do Tramway da Cantareira passou a ser marcada por múltiplos problemas operacionais, que incluíam acidentes constantes e questões de segurança para ferroviários e passageiros. A imprensa da época frequentemente reportava esses incidentes, que variavam de pequenas ocorrências a tragédias graves, alimentando páginas de jornais com notícias sobre a morte e a violência na cidade.

Os acidentes eram uma rotina sombria na ferrovia. Análises de notícias de jornais entre 1906 e 1962 revelam que as vítimas eram predominantemente homens com idades entre 21 e 30 anos. Colisões com pessoas, atropelamentos, quedas, tombamentos e colisões com outros veículos (bondes, caminhões, carroças, ônibus) eram os tipos de ocorrências mais comuns.

A precariedade do material rodante, com locomotivas chegando “sem paradas (a não ser nas estações)” e carros “caindo em pé”, era frequentemente criticada.

A superlotação era outro drama diário enfrentado pelos passageiros, especialmente nos horários de pico. Desde a década de 1920, a questão já era perceptível, e em 1940, o Tramway transportava uma média de 300 passageiros por quilômetro, superior à de outras ferrovias brasileiras renomadas. Os números anuais de passageiros chegaram a mais de 11 milhões em 1960.

Porém, a crescente preferência e investimento no transporte rodoviário no Brasil, com a construção de rodovias e a expansão do uso de automóveis e ônibus, selou o destino do Tramway, que começou a ser esvaziado em 1964 e chegou ao fim de 1965.

Número de passageiros do Tramway da Cantareira
Tabela com número de passageiros do Tramway da Cantareira (Fonte: O que o Tramway da Cantareira pode nos ensinar?; Unifesp; Fernandes, Rafael Saraiva)

Fim da linha para o Tramway da Cantareira

Ao longo de sua existência, diversas propostas de remodelação foram apresentadas, muitas das quais defendiam a eletrificação da linha como forma de modernizá-la e superar seus déficits. No entanto, a falta de investimento e a obsolescência se acentuaram, enquanto a cidade avançava e pressionava a ferrovia por mais espaço.

Em Guarulhos, por exemplo, o Anel Viário hoje ocupa o mesmo traçado onde antes estavam fixados os trilhos da ferrovia. Em São Paulo, uma referência atual é a avenida Cruzeiro do Sul. Projetos de infraestrutura rodoviária e a demolição de elementos como a ponte sobre o rio Tietê gradualmente levaram à desativação de trechos da linha.

A última viagem do Tramway da Cantareira ocorreu em 31 de maio de 1965. As motivações incluíram os resultados financeiros negativos, os problemas operacionais crônicos e a percepção de obsolescência, especialmente no contexto da priorização do transporte rodoviário. Para uma parcela da população, a desativação era até um desejo, dados os transtornos enfrentados.

A última viagem do “famoso trenzinho da Cantareira” foi marcada por um tom melancólico, com o trem tocando sua sirene ao longo do percurso entre Tucuruvi (que se tornou ponto inicial após a retirada de outros trechos) e Guarulhos. A desativação encerrou uma era para os moradores que dependiam da ferrovia.

Apesar de seu desaparecimento, restam vestígios materiais do Tramway. Um lugar que deveria preservar a memória da linha ferroviária fica na Praça IV Centenário, local da antiga estação Guarulhos. O complexo inclui a casa do chefe da estação (conhecida como Casa Amarela) e uma locomotiva semelhante às que circulavam na linha, carinhosamente apelidada de “Dona Joaninha”. No entanto, o local está abandonado e não cumpre uma função que deveria incluir preservação histórica e atração turística.

A fotografia colorida que ilustra este texto e as duas imagens abaixo foram reveladas em setembro de 1963 e foram encontradas nos Estados Unidos –não se sabe por que estavam lá– e publicadas no blog Quando a Cidade Era Mais Gentil, de Martin Jayo.

Fotos coloridas do Tramway da Cantareira

LEIA TAMBÉM -> Por que o Aeromóvel do Aeroporto de Guarulhos ainda não está funcionando?

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